20 de abril de 2014

Chaimite Pensada para a guerra, testada na revolução, esmifrada na paz

Foi um roncar poderoso, em esforço, que fez desaparecer o pacífico som dos pingos da chuva no meio das árvores naquela paisagem de verde intenso que emoldurava o vale onde repousa o franciscano Convento Montariol.

O dia corria cinzento e chuvoso nos arredores da cidade de Braga. Nas traseiras do quartel do Regimento de Cavalaria 6, dois blindados verde-tropa irromperam pelo terreno a cuspir fumo branco com os corpos de três militares de pé a sair do casco, dançando perigosamente, enquanto as gigantescas rodas negociavam os solavancos do terreno. Quando finalmente estacaram, ao som do motor juntou-se o ruído metálico de uma escotilha que se escancarou para de lá sair um militar em corrida com duas estacas na mão. No topo das viaturas, outro militar acenava pausadamente, indicando onde as estacas deviam ser colocadas no terreno. Do interior do blindado, saía o cano de um morteiro, em posição de disparo. Seis homens repetiam em poucos segundos o ritual com que testavam a sua prontidão para a eventualidade de serem chamados a uma qualquer parte do hemisfério norte, missão actual do Esquadrão de Reconhecimento, numa escala para fazer parte da efectivo internacional da NATO Response Force.

Mais acima no terreno um zumbido denunciava a presença de um outro blindado, ainda a cheirar a novo. Um sussurro perceptível apenas para os que se encontravam a escassos metros da imponente viatura, onde outros dois militares encaravam, concentrados, dois ecrãs de computador, ignorando os movimentos ruidosos das outras duas máquinas a mais de 100 metros.

Foram as arestas laterais dos blindados no fundo da depressão a revelar a sua identidade. Quarenta anos depois da Revolução do 25 de Abril e 47 anos depois das primeiras encomendas, o Exército continua a utilizar Chaimites, os blindados de rodas que se tornaram num dos ícones do fim do Estado Novo. O regime que os construiu pouco tempo teve para deles tirar proveito. Foi a Revolução que o derrubou e mais tarde a democracia que lhe sucedeu que deu uso aos primeiros blindados desenhados, projectados e montados em Portugal. E que, ainda hoje, os faz rolar nos campos ao redor de Braga, mas também no Campo Militar de Santa Margarida e, além disso, a mais de 3500 quilómetros de distância, no Kosovo.

A crise e as limitações orçamentais que pesam sobre o país podem fazer com que estes blindados ultrapassem os 50 anos de serviço. O número das modernas Pandur que foram chegando aos quartéis não são ainda suficientes para fazer das Chaimites peças de museu.

Actualmente, nove estão ao serviço do contingente português destacado no Kosovo. Quinze fazem parte do efectivo bélico do Regimento de Cavalaria 6 de Braga. Cinco estão na Escola de Armas, em Mafra. E três estão na Direcção-Geral de Material do Exército. Restam 32 das 84 que o Exército recebeu da empresa portuguesa Bravia entre o final dos anos 60 e inícios da década seguinte.

Não são já as mesmas que o major reformado Donas Botto fez ver a luz do dia nos arredores de Lisboa. Mas, ao longo de quase meio século, a sua história andou sempre a par dos atributos e vicissitudes do modo de ser português.

Miguel Machado, com a autoridade concedida por anos dedicados à história do blindado, afirma-se convicto que noutros países o processo que levou à sua construção daria “um belo filme”. O seu contacto com as viaturas vem de longe. Da Bósnia, onde serviu como oficial no primeiro contingente militar português para aí enviado pelo Governo de António Guterres.

A sua curiosidade levou-o aos arquivos do Exército. Foi aí que encontrou as primeiras referências a Donas Botto – que na altura se dedicava ao negócio do material militar – , desafiado pelo Exército a fabricar um blindado em Portugal, depois de o Governo norte-americano se ter recusado a vender ao Estado Novo 50 viaturas para transporte de pessoal.

A solução encontrada foi copiar o modelo norte-americano chamado V100 Commando. “É a mesma coisa que qualquer país faz quando é alvo de um bloqueio”, explica Machado. Num dos seus artigos publicados em revistas militares, o oficial dá conta de que em 1967 chegava a Lisboa uma “misteriosa carga”, descarregada e transportada para as Oficinas Gerais de Material de Engenharia, em Belém. Eram um exemplar da V100 da Cadillac Gage. Em “segredo” aterrava na Portela um engenheiro-chefe e um operário especializado dessa empresa. Com ele trazia os “planos” do blindado. Nos bastidores, Donas Botto negociava no estrangeiro a aquisição de peças essenciais ao projecto. Depois do protótipo ter sido revelado ao Exército, os primeiros cascos começam a ser fabricados na Sorefame. O esforço de produção leva o empresário a comprar a totalidade do capital da VM, que construía tractores e camiões no Porto Alto. Em 1970, o Exército já tinha recebido 18 V200 Chaimite – que na realidade eram uma autêntica cópia das americanas Commando. As diferenças era mínimas e resultavam das limitações industriais de Portugal. “O casco da viatura da V100 é arredondado, sem soldaduras, a Chaimite era soldada”, explica Machado.

O esquema não escapou às autoridades da superpotência, irritadas com o autêntico caso de espionagem industrial. “Donas Botto foi condenado à revelia e proibido de entrar nos EUA”, recorda Machado. O engenheiro Gerald Larson, quando regressa aos Estados Unidos, acaba condenado por “transferência de tecnologia”. O mesmo acontece a outro empresário norte-americano a quem Botto havia recorrido para obter peças. Em 1971, os jornais de Detroit davam conta de que um tal de Robert Marshall fora acusado de “vender material bélico proibido a Portugal”. “Diferenciais de motor” e “blocos de visão prismática”, ou seja, materiais para equipar as Chaimites.

Por essa altura já as Chaimites rolavam em África. O tenente-coronel Ferreira, comandante do grupo de autometralhadoras do RC6, fez as contas ao PÚBLICO a partir dos arquivos de Exército. “Quatro na Guiné a partir de 1970, três em Moçambique a partir de 1972 e sete em Angola a partir de 1971.” Mas houve percalços nas primeiras provas. “Logo na primeira apresentação, na Guiné, na presença de Spínola, partiu-se um semi-eixo”, recorda Machado. Mas a principal razão para as Chaimites não terem chegado a África rapidamente e em força teve mais que ver com as dificuldades que a Bravia – empresa de Botto – teve em colocar fora da fábrica as 84 encomendas feitas em 1967 e 1968.

Chegaram, no entanto, bem a tempo do mais importante acontecimento histórico da segunda metade do século XX português. Salgueiro Maia levava duas consigo quando rolou de Santarém para o Terreiro do Paço na madrugada de 25 de Abril de 1974.

Uma delas, a Bula, ficou para a história. Foi no interior de uma Chaimite que o capitão de Abril colocou Marcello Caetano, ao evacuá-lo do Quartel do Carmo. “A Chaimite teve de ir lá dentro porque as pessoas estavam prontas para fazer o ajuste de contas”, recorda Carlos Beato, comandante do sexto grupo de combate que saiu com Salgueiro Maia da Escola Prática de Cavalaria e presidente da Câmara de Grândola até ao ano passado. A Bula está agora no Museu da Cavalaria, instalado no Quartel de Abrantes.

O Verão Quente e o Processo Revolucionário em Curso (PREC) fizeram o resto para elevar o blindado ao estatuto de ícone da revolução. Andaram por todo o lado, nos papéis mais variados. Beato recorda-se de as usar em “momentos de tensão”: “Durante a reforma agrária, com a ocupação de herdades, de empresas, as Chaimites foram um dos equipamentos utilizados.”

Arnaldo Cruz, que foi presidente da Autoridade Nacional de Protecção Civil até 2012 e naqueles anos estava no Regimento de Comandos, também se lembra do blindado. Não podia ser de outra forma, já que aquela tropa de elite acabou por ser a unidade que mais Chaimites teve nas suas fileiras: 52. Eram usadas para transporte de pessoal, mas não só.

Foram recrutadas para o “reforço alargado no forte de Caxias”, quando era necessário “interditar algumas áreas”. Impunham-se pela sua presença: “O barulho dos motores mesmo em ponto morto assustava um pouco. Era mais pelo barulho dos motores do que pelo armamento.”

Mas também fizeram parte de actividades mais pacíficas, como as “campanhas de divulgação e informação política”. Foi uma época diferente, lembra Arnaldo Cruz, em que os comandos iam até ao Sardoal para ajudar os agricultores “na apanha da azeitona”.

Os anos 80 foram mais pacíficos. Permitiram, por exemplo, a reconversão de 81 Chaimites, ironicamente, na fábrica norte-americana de onde havia saído os planos que permitiram o seu fabrico. Entre 1985 e 1988, na Cadillac Gage e nas Oficinas do Exército, trocaram-se os motores a gasolina por outros a gasóleo, substituiu-se a caixa manual por uma automática e reforçaram-se os calcanhares de Aquiles das Chaimites, os semi-eixos. Algumas delas sofreram modificações mais extensas para se transformarem em porta-mísseis e porta-morteiros.

Mas nem com esse upgrade estavam preparadas para a missão mais exigente que as esperava. Quando o Ocidente decidiu intervir nos Balcãs, Portugal seguiu os seus aliados. E assim seguiram para a Bósnia, em 1996, 26 Chaimites. “A época em que a Chaimite foi mais usada foi em 1996, na Bósnia”, assegura Machado. Milhares de quilómetros nas montanhas fazendo escoltas de comboios humanitários, transporte de altas entidades e feridos, missões de reconhecimento na neve.

“Era uma viatura claramente desadequada para aquele teatro de operações. Foi um desenrascanço tipicamente português. Quando chegou a altura de partir para a Bósnia, o Exército não tinha blindados de rodas de transporte a não ser a Chaimite. Puseram-lhe um aquecimento rudimentar, uma chauffage da Iveco, creio, e lá vão elas”, diz Machado. Houve “duas tentativas de desenrascanço: a chauffage em 1996 e a cobertura para a condução”, reconhece o tenente-coronel Ferreira. Não tiveram grande sucesso, e quem pagou foi o soldado português que teve de as operar.

Quando Portugal teve de enviar os jipes Humvee para a Força Nacional Destacada no Afeganistão, voltaram a ser usadas no Kosovo. Garantia do tenente-coronel Ferreira, que fez uma comissão na região em 2000. “As Chaimites saíam todos os dias, fizeram milhares de quilómetros”, recorda. Em missões de patrulhamento, acções de controlo de tumultos, montagem de postos de controlo, operações de cerco e busca para apreensão de armamento.

Ainda por lá andam nove. Mas com os dias contados, uma vez que na última rotação seguiram também as suas sucessoras, as Pandur. “Comparado com a Chaimite é um avião, mas também basta acender uma luz vermelha e aquilo bloqueia”, brinca Machado. Mas a verdade, como diz o oficial da RC6, é que os novos blindados “fazem coisas que a Chaimite não pode fazer”. Computação, visão nocturna e armamento do século XXI.

O habitat interior mostra de que mundos diferentes vieram as duas máquinas. O espaço acanhado, ruidoso, abafado e metálico da Chaimite é muito diferente do habitáculo sussurante, climatizado e de assentos individuais almofadados da Pandur.

Mais tarde ou cedo acontecerá às Chaimites que restam o que sucedeu já à maioria. Afinal, a cada ano que passa é mais difícil encontrar sobresselentes, os sistemas hidráulicos já falham e os travões já não garantem toda a segurança. Acabarão “desmilitarizadas”, ou seja, estripadas do seu material classificado, de rádios, armamentos e dísticos por forma a transformá-las “num bocado de chapa com rodas”.

Mas não será para já. Porque o modelo porta-morteiro da Pandur ficou a apanhar pó num armazém, nos acabamentos finais, quando o Estado português denunciou o contrato com a Steyr. Até que esse imbróglio se resolva, se, entretanto, a NATO tiver de agir num qualquer canto do hemisfério e chamar o efectivo português, assim seguirão, mais uma vez as Chaimites com os soldados portugueses ao som do seu rugido imponente, colorido pelos vapores dos anos históricos do século XX. (Público)

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