26 de outubro de 2014

O “moral” das tropas em África

O moral das tropas portuguesas manteve-se sempre em níveis elevados durante toda a guerra colonial.

Por meados da década de 1960, num final de tarde, em Buela, povoação situada no norte de Angola, “bem junto” à fronteira com o Zaire, o aquartelamento onde se encontrava instalada a Companhia de Caçadores 670 foi alvo de um ataque executado por homens da UPA/FNLA. “Após umas curtas rajadas de pistola-metralhadora” choveram “morteiradas, tiros diversos de espingardas automáticas, [e mais] rajadas de pistolas-metralhadoras”. O “aquartelamento” esteve sob flagelação inimiga durante “largos minutos”, especialmente “a zona da parada e do refeitório”, varrida por “fogo intenso e cruzado”.
“Morteiradas” e “rajadas”.

César Oliveira, autor deste relato e na altura, ao que tudo indica, alferes miliciano, racional ou intuitivamente percebeu que não “podia abandonar e deixar «sem rei nem roque»” os seus “homens, por quem, desde Chaves, me sentia responsável e quase «guardião» da sua própria vida.” Por isso, seminu, “com apenas cuecas e botas”, pegou numa arma automática (a belga FN) e “em algumas granadas de mão”, decidindo-se a atravessar a “parada varrida pelo fogo «inimigo»”, o que fez num momento em que tudo parecia “mais «calmo»”, correndo aos “«ziguezagues» como aprendera, e também ensinara,” para junto dos seus “homens”. Quase a “meio do percurso” sentiu um “ardor intenso na perna esquerda, bem perto do pé”, mas continuou a correr.

O oficial miliciano César Oliveira, futuro deputado do Partido Socialista, era então um estudante universitário precocemente mobilizado, empedernido oposicionista ao salazarismo e crítico convicto daquilo que seria o absurdo da política colonial portuguesa, além de avesso aos princípios da instituição militar em que se vira compulsivamente incorporado talvez um par de anos antes dos acontecimentos aqui relatados. Foi no entanto ele que, nesse dia em Buela, organizou a “defesa” com a ajuda de vários camaradas que nomeia.

Uma metralhadora pesada Breda, M37, de origem italiana, transformou-se num auxiliar precioso. Foi usada para disparar “sem cessar, às cegas”, porque não se via ninguém, até que o “cano” ficou quase “rubro de tanto metralhar”. Organizou-se depois e como se pode, sob a liderança do capitão Esteves de Almeida, o “contra-ataque à morteirada, disparando a esmo, a torto e a direito, para tudo quanto era lado”.

Do ataque resultou, além de um ferimento grave de que foi vítima o 1.º cabo Armando, um ferido ligeiro (justamente o autor do relato). O “ardor forte e intenso” que sentira na perna enquanto atravessara a parada em grande correria e debaixo de fogo fora provocado por um “pequeníssimo” estilhaço de uma granada de morteiro. Iniciado o tratamento dos dois únicos feridos – o mais grave, que sobreviveu, seria evacuado na manhã seguinte –, e depois de se começar a fazer uma primeira avaliação dos estragos causados pelos atacantes, o aquartelamento voltaria a estar sob fogo dos guerrilheiros, embora desta vez ataque tenha sido “menos forte e mais curto”, não provocando sequer baixas. Porém, as munições, especialmente as granadas de morteiro, foram quase todas gastas.

O que é e como se conquista e preserva o “moral” dos combatentes.

Este relato, como outros sobre aspectos mais prosaicos da vida deste oficial miliciano, quer durante o cumprimento da sua “comissão” em Angola, quer durante a recruta feita na metrópole, ensina alguma coisa sobre um dos elementos mais importantes, e em certa medida até determinante, para o desfecho de uma batalha, de uma campanha ou de uma guerra: o do moral dos militares. Na sua aparente simplicidade permite-nos perceber que o êxito ou o fracasso de um militar, ou dos militares, em combate são determinados pelo seu estado moral, sendo que um exército só é bem-sucedido, i.e. vencedor, se, para além de bem equipado e bem liderado, possuir um espírito combatente claramente superior ao do(s) inimigo(s).

Como deduziu em 1903 o marechal Foch, fazendo uma constatação que lhe parecia óbvia e que se tornaria célebre nos meios militares dedicados à avaliação dos resultados da acção de exércitos treinados e enviados para matar, se a “guerra” era igual ao domínio da força moral, a “vitória” numa guerra decorria da “superioridade moral” dos vencedores e da “depressão moral” dos vencidos.

Note-se, porém, que o termo “moral” foi usado pelo marechal tal como fora utilizado por muitos dos seus antecessores, por alguns dos seus contemporâneos e por aqueles que vieram depois dele, em análises várias que foram sendo feitas sobre a guerra e o espírito combatente (ou de combate) dos militares. Não dizia respeito a uma realidade com claras ou óbvias conotações éticas, ou seja enquanto interpretando a acção e os objectivos dos beligerantes como encarnação do bem e/ ou do mal. “Moral” tinha aqui um sentido essencialmente emocional e/ou psicológico que permitia que, por exemplo, os militares em combate não se rendessem a uma espécie de instinto natural de sobrevivência ou de auto-preservação.

Por outro lado, uma avaliação sobre o moral das forças armadas não buscava nem conhecer nem, sobretudo, atingir um nível moral irrepreensível capaz de fazer com que a generalidade, senão mesmo a totalidade, dos militares se comportassem como heróis no campo batalha, fosse numa frente guerra descrita como “convencional”, fosse numa outra definida como “irregular”. Uma avaliação do moral militares resumia-se a criar condições para que estes fossem capazes de criar e preservar a maior quantidade de tempo possível um elevado, ou pelo menos razoável, espírito de combate.

O moral dos militares é importante, para não dizer essencial, numa guerra. Mas é-o ainda para a população civil que directa ou indirectamente sustenta uma guerra e paga um preço mais ou menos elevado pela existência de um conflito militar.

Quatro factores de moral militar.

No que diz respeito às Forças Armadas a questão da sustentação do moral dos combatentes tem sido explicado à luz de quatro variáveis. Em primeiro lugar, tem-se defendido que um bom estado moral do militar depende do primado dos pequenos grupos de combatentes na organização militar para a guerra na frente, nomeadamente através da sua criação, consolidação e preservação.

Esta explicação, porém, tem as suas limitações, em especial pelo facto de muitos exércitos terem conseguido preservar um bom estado moral e, portanto, disponibilidade para continuar a lutar, a matar e a morrer mesmo em situações e/ou organizações em que os pequenos grupos não são a forma dominante de organização, ou em que os pequenos grupos são dizimados rapidamente como consequência da intensidade e violência dos combates.

Esta e outras limitações encontradas no modelo do pequeno grupo enquanto sustentáculo moral de forças militares, fizeram com que historiadores e outros estudiosos deste fenómeno tivessem identificado a “ideologia” como o cimento da “motivação em combate.” Ou seja, aquilo que a lealdade de um pequeno grupo não podia garantir era no fim de contas garantido pela forma como um conjunto mais ou menos tosco ou sofisticado de ideias políticas era inculcado em tropas mobilizadas para combaterem.

No entanto, e só por si, a doutrinação ideológica, tal como solidariedade entre combatentes organizados em pequenas unidades militares (pelotão, companhia ou mesmo batalhão, no caso da infantaria), não explica por si só as razões pelas quais alguns exércitos possuem e conseguem preservar um elevado moral ou espírito de combate.

É verdade que fornecer formação política (patriótica ou nacionalista) é importante quando se envia um militar para a frente de combate, da mesma que deve ser inculcado o sentido de dever que o faz aceitar a mobilização ou até oferecer-se como voluntário. No entanto, enquanto elemento capaz de criar e sustentar um elevado moral em combate, a doutrinação e a formação política-ideológica é um elemento necessário mas não suficiente.

A terceira variável igualmente considerada enquanto elemento de sustentação da motivação em combate assenta fundamentalmente em factores “negativos”, entre os quais se destaca o grau, a natureza e a eficácia das punições impostas aos combatentes. No entanto, aquilo que se sabe é que as forças militares que sofreram um maior número relativo ou absoluto de punições de militares em resultado, por exemplo, de deserções ou motins, não foram aqueles que maior ou melhor moral apresentaram na frente de batalha ou na retaguarda.

Resta, portanto, um quarto elemento explicativo da menor ou maior capacidade que um militar, ou um corpo de militares, apresenta para enfrentar as provações criadas pela guerra, sobretudo nos mementos em que o contacto com o inimigo acontece, aconteceu ou é iminente. A determinação de lutar e a capacidade de criar e preservar combatentes com um moral elevado decorre, fundamentalmente, da qualidade do treino, ou da formação militar, recebido antes, durante e após a presença dos militares na frente, seja qual for a natureza desta.

E porquê? Porque o treino militar contraria, em primeiro lugar, um dos aspectos que mais contribui para a erosão do moral: a rotina excessiva, para não dizer a monotonia. Depois distingue o militar do civil, gerando orgulho profissional e/ou corporativo. Em terceiro lugar porque cria coesão numa unidade (i.e., o chamado “espírito de corpo”). Em quarto lugar, bom treino militar e treino militar bem calibrado garantem que praças, sargentos e oficiais assimilam melhor o pensamento táctico, facto que tende a tornar instintiva a sua aplicação.

Por fim, o treino permite ainda que os militares enfrentem com maiores possibilidades de sucesso, ao ponto de as ultrapassarem, os desafios e as dificuldades decorrentes da introdução de tecnologias inovadoras. Isto significa que a importância do treino militar é fundamentalmente psicológica, porque geradora de processos que criam não apenas rotinas mas, também, a autoconfiança necessária para, por exemplo, enfrentar com êxito o factor surpresa que é, de longe, o maior factor destruição da coesão colectiva e do espírito de combate.

A narrativa da acção militar com que se deu início a este texto demonstra claramente ser razoável, ainda que não o ideal, o estado de espírito, ou o moral, dos militares portugueses que em Buela enfrentaram com êxito a acção militar levada a cabo pela UPA/FNLA num fim de tarde após a conclusão de um jogo de futebol entre os militares destacados naquele aquartelamento.

Nomeadamente, o factor surpresa, mesmo descontando a debilidade relativa, do ponto de vista militar, dos atacantes, não impediu uma reacção pronta e eficaz. E tal foi possível graças ao treino militar recebido durante a recruta e à rotina de treino adoptada em Buela.

É verdade que noutras passagens das suas memórias relativas aos anos que passou em Angola, César Oliveira relata a excessiva monotonia do quotidiano dos militares destacados no extremo norte daquela “província”, da mesma forma que dá conta da inexistência de outros confrontos com forças inimigas. Também refere a sua oposição, como de alguns outros oficiais, às escolhas políticas e ao discurso ideológico que sustentavam a bondade e a legitimidade da guerra em curso desde 1961, e não se exime de dar conta dos expedientes que abundantemente usou para escapar aos seus deveres militares em Buela. Nomeadamente encontrando pretextos relativos ao seu alegadamente deficiente estado de saúde, facto que lhe permitia descolar-se a Luanda e lá permanecer muito mais vezes e durante muito mais tempo do que seria normal.

Sucede, no entanto, que este aparente, ou real desleixo, é um procedimento normal nos conflitos militares, por ser uma forma de preservação de equilíbrios essenciais ao funcionamento, por exemplo, de uma unidade militar (o chamado “live and let live system” existente em todas as Forças Armadas).
O “moral” das “tropas” ou porque (nunca) estiveram as Forças Armadas portuguesas à beira de uma derrota militar…

Se extrapolarmos a experiência de um oficial miliciano tal como a relatada por César Oliveira e a cruzarmos depois com as considerações mais teóricas – independentemente das respectivas bases de sustentação empírica – sobre o que é o moral dos militares e como se consegue obtê-lo e preservá-lo, parece óbvio que até ao momento em que o regime nascido em 1933 foi derrubado na sequência de um golpe militar a 25 de Abril de 1974, o moral das Forças Armadas portuguesas mantinha-se em níveis aceitáveis que permitiam considerar realista a continuação do esforço militar nas colónias por mais alguns anos.

É verdade, no entanto, que o moral tropas era superior nas chamadas forças especiais do que no exército regular e entre as tropas recrutadas em África do que nas oriundas da metrópole (de qualquer modo na Primavera de 1974 era cada vez menor o número de militares mobilizados e colocados na frente oriundos do Portugal metropolitano, do mesmo que cabia cada vez mais às tropas especiais executarem a quase totalidade das operações militares de risco).

Sabemos muito pouco, e provavelmente nunca se saberá muito mais, sobre qual era o estado espírito dos homens que compunham as milícias civis recrutadas e treinadas localmente. Mas sabemos, por exemplo, que apesar de a contestação político-ideológica à guerra parecer estar a crescer, restando apenas saber se essa contestação poderia ser travada e até invertida, tanto em alguns sectores do Exército português como em alguns sectores da sociedade portuguesa nas colónias como na metrópole, a verdade é que os dados sobre o número de “desertores”, de “faltosos”, de auto-mutilações ou de “motins” não eram alarmantes embora fossem sempre motivo de atenção e preocupação por parte dos serviços de informação e acção psicológica, tanto civis como militares.

Isto significa, portanto, que sendo o problema do “moral” e/ou do espírito de combate uma preocupação das chefias civis e militares, a verdade é que como consequência do treino militar ministrado, mais do que como resultado de qualquer outra variável, e olhando para os dados globais disponíveis em torno do grau de coesão das Forças Armadas, o seu moral podia ter sofrido alguma erosão, mas essa erosão não só podia ser revertida – embora nunca saberemos se o poderia ter sido ou não.

Nesse sentido, só após o golpe que depôs o regime autoritário português é que se assistiu, ainda que não se saiba a que ritmo, ao descalabro do moral das Forças Armadas portuguesas. Ou seja, foram as mudanças políticas ocorridas após o 25 de Abril que destruíram o moral das Forças Armadas e as próprias Forças Armadas, e não uma crise profunda e generalizada nas Forças Armadas que conduziu ao derrube do poder político vigente até madrugada do dia 25 de Abril de 1974. (Fernando Martins - O Observador)

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